é como uma locomotiva em marcha, a estação de desconforto e claridade 
frank o'hara

1
Mas, se nestas seis décadas e meia
eu fui capaz de algum voo

— concedo: semelhante ao das galinhas,
isto é, rudimentar, desgracioso,
com muitíssimo dispêndio de energia
para pouca ascensão, breve e apenas
em desespero de causa;
em todo o caso uma forma de voo
pelo qual me sustentei no ar
em horas de menos peso —

devo agora, fechado o ciclo do voo,
como os pássaros pousar.
E isto não é como uma loja
que muda de ramo
ou que em fins de Dezembro
fecha para balanço.
Nem como executar
um mandato de detença.
Nem expiar a desordem
de, sendo pedestre, ter voado.
Nem um remate compulsivo
à sedição.

Pousar, é tudo. Regressar
ao afago das coisas da terra.
A terra cobrar por fim o que lhe devo
e eu cobrar dela o que me move
desde a primeira hora.

Voei, está voado.
Nada de nostalgias.

2
Escolho o galho
mais ajeitado à minha condição
e, como a ave a quem o voo se esgota
temporariamente, apeio-me do voo.
E também como a ave que, acabada
de pousar, bate ainda as asas
por duas ou três vezes,
assim as bato eu.
Mas enquanto a ave as bate
como para sacudir delas
os resíduos do voo,
eu faço-o por exigência de equilíbrio:
o ramo verga, já não tenho
a agilidade doutros tempos,
cairia se não batesse as asas.
Isto é: bato-as da mesma forma que
o funâmbulo tenteia a vara
e o cego a bangala.
Para me acomodar mais facilmente
no exterior do voo.
3
Nem o meu pouso é passageiro
como o da ave. Daqui em diante
assistirei ao decurso dos dias
pousado definitivamente.
Eis-me pois pousado, procurando
ajeitar o corpo à nova condição.
Os olhos erguidos para o espaço
donde me escorracei
para saber se porventura risquei
o cristal do ar com o meu voo.
Um arranhão que fosse, que depois dele
o cristal já não fosse cristal.
Não risquei.
Louvado seja Deus.
Depois de tanto voo desastrado
deixo o ar nítido inteiro
como o encontrei.
(Não admira. Sempre tive o cuidado
de sacudir os pés à entrada do voo.)
4
Não. Não é por nostalgia,
que nesta hora extrema de pousar
me lembram as hábeis imprudências do voo,
as suas impudências, a tomada da luz.
Parece-me isto antes gratidão.
Voar foi sempre o mais útil
dos meus gestos inúteis.
A haste de feno ao canto da boca.
Um donativo à carne.
O orifício por onde
se escoavam as enxurradas.
Intensamente pousado,
é isto que me lembra.
 
 
A. M. Pires Cabral,
Telhados de Vidro n.º 6. Lisboa, Averno, 2006

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Tengo las manos de ayer, 
me faltan las de mañana.

Eduardo Chillida


Peine de los Vientos
Eduardo Chillida,
San Sebastian 
/alcochete, julho 12/


Diego no conocía la mar. El padre, Santiago Kovadloff, lo llevó a descubrirla.
Viajaron al sur.
Ella, la mar, estaba más allá de los altos médanos, esperando.
Cuando el niño y su padre alcanzaron por fim aquellas cumbres de arena, después de mutcho caminar, la mar estalló ante sus ojos. Y fue tanta la inmensidad de la mar, y tanto su folgor, que el niño quedó mudo de hermosura.
Y cuando por fin consiguió hablar, temblando, tartamudeando, pidió a su padre:

- Ayudame a mirar!

Eduardo Galeano